terça-feira, 4 de dezembro de 2007

ASSIM NO CÉU COMO NA TERRA

A vida pra ela acabava assim, meio sem graça. Que nem maria-mole, arroz sem acompanhamento e partida de futebol sem gol.

Tinha lá seus cinqüenta e pouquinhos. Era bem jovem, e é bem verdade que não se pensava assim. Aliás, se comportava como se tivesse bem mais, como se já tivesse uns oitenta e muitos. Era chata, ranzinza, resmungona, e é bem verdade que gostava de maltratar os gatos da vizinhança jogando-lhes as águas sujas dos seus constantes “escalda pés”.

Porém, como não era de se esperar, foi para o céu. Não podia acreditar que sabendo ter sido anunciada várias vezes a encomenda de sua futura visita ao inferno, estivesse parada ali, diante daquela porta gigantesca, com maçanetas de argola sobre a fechadura. Resolveu espiar - coisa que fazia muito bem - aproximou-se da porta, encostou as mãos a fim de apoiar-se. Levantando os pés metidamente, inclinou o corpo em direção a fechadura. Com a cabeça já dentro da porta, olhou tudo o que pode ver. Achou aquilo tudo muito bonito e muito azul, com garotinhos peladinhos voando por todos os lados. Pôde finalmente constatar de que não se tratava do limbo. Olhou mais um pouco. Achou tudo muito interessante, mas depois de dez minutos passados, percebeu que aquilo tudo era muito lindo e bobo. Os bichos tinham asas! Gatos voadores... Até mesmo os vira-latas eram alados... Qual seria então a função dos passarinhos? Nesse lugar, seriam apenas como os pintos, com a diferença de que quando crescessem, não virariam galinhas.

Cansada de olhar, resolveu procurar por alguém que pudesse convidá-la a entrar. Tirou a cabeça da fechadura com certa dificuldade, pois havia dormido com “bobies” no cabelo, e, sendo assim, prendeu um deles num prego. “Merda!” - resmungou levando seguida e rapidamente uma das mãos à boca, temendo que alguém a tivesse ouvido, condenando eternamente sua entrada no céu. A porta de repente começou a ranger um rangido horrível. Percebeu que se abria. Teria tempo de soltar os cabelos? Não pensou duas vezes. Começou a puxar loucamente os “bobies” e os grampos. Terminou de arrancá-los exatamente quando um velhinho de walkman, túnica amarelinha e um cinturão cheio de chaves abriu a porta. Era São Pedro, tinha certeza. O velhinho se aproximou. Circulou em volta. Olhou estranhamente para sua cara despenteada... Aproximou-se e: “Com licença” - tirou um último “bobie” da cabeleira emaranhada. “Aqui é o céu?” - ao que ele respondeu: “Parece.”- Suspirou aliviada. “Seja bem vinda à eterna morada.”- Meu Deus! Ela mal podia acreditar!!! Finalmente a casa própria! Deu um dos braços ao velhinho e arrastando-o devagar pra dentro da porta, desabafou: “Que bom estar aqui! Sempre sonhei com este lugar... Sempre fui tão religiosa, sabe São Pedro... Sempre fui tão caridosa...” Era tudo mentira, mas o velhinho parecia nem desconfiar da louca que falava e falava e falava sem parar. São Pedro pacientemente ouvia, de vez em quando anotando alguns números cheios de algarismos em seu note book. De súbito a mulher resolveu calar-se. Parou também de andar. Fez uma cara de susto. Perguntou as horas. “Tem televisão?”

Num piscar de olhos estava sentada numa poltroninha bem confortável ao lado de gente muito estranha. “Ai, meu Senhor! E pensar que todos estes são meus irmãos...” Mal podia acreditar que mesmo no céu poderia ver a novela. “...E eu que pensei que ia pro inferno...” - Sorria tranqüíla, até que percebeu que um garotinho ajoelhado a sua frente escondia uma melequinha debaixo do sofá. “Garotinho porco! tirando meleca no céu! É muita cara de pau, hein, criança!” - Nesse momento um homem daqueles de armadura dos livros abriu a porta da sala e pegou a mulher pelo braço. “Me solta!” - “A senhora violou a lei da boa convivência, e como estava em seu período de experiência no céu, foi detida. Além disso, segundo os apontamentos de São Pedro, as informações sobre a senhora não foram nada favoráveis”. “Mas aquele menininho insolente estava tirando meleca! E ainda por cima passou debaixo do sofá! No céu, isso devia ser uma calamidade!” - O homem educadamente respondeu: “Minha senhora, o menino Jesus pode fazer o que quiser. Até mesmo colocar sua melequinha debaixo do sofá”...

E assim acabou a história da mulher ranzinza que foi assistir novela no lugar errado. Amém.

Escrito em 30 de agosto de 2 mil, tempo em que eu tinha mais tempo para escrever...

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