domingo, 15 de julho de 2007

A PAZ

“Não consigo entender quem apunhala um coração e segundos depois tira o punhal do peito – ainda quente –, corta um pão e o lambuza com manteiga.”

Esse era o reincidente pensamento de D. Rosa às 3:46 da manhã. E não havia silêncio suficiente que a fizesse pregar o olho. Tudo o que mais queria era viver em paz. Mas temia que talvez a única possibilidade para realizar seu desejo fosse a morte. Virou o travesseiro de lado e o afofou um pouco. Amava seu marido ainda. Apesar do tempo, das brigas, das decepções, ainda o amava. Ajeitou o lençol cobrindo a orelha mas tomou cuidado para que o braço esquerdo ficasse de fora. Colocou 3 filhos neste mundo. Dois já criados e um já morando debaixo da terra. Morreu ainda bebê, levando todos os sorrisos de sua juventude e também dos anos futuros. Afofou novamente o travesseiro, com mais vigor e enfiou a cabeça na intenção de esconder o ouvido direito bem escondido. O marido dormia ao lado, pesadamente. Era tão silencioso – e ausente – que se não estivesse ali, talvez não a fizesse falta. Porém, a presença dele a deixava segura. D. Rosa tinha medo de fantasmas. Tinha certeza de que se visse algum e desse um grito, o marido a salvaria. Enganava-se. Ele sequer moveria um dedo. Talvez a empurrasse para proteger a si próprio. Era um grande egoísta. D. Rosa enfiava a mão direita debaixo do travesseiro e com a outra tapava a própria boca. Achou que fosse gritar e não queria acordar o cachorro. Não se importava com o marido, mas com o cachorro sim. Seu fiel companheiro. O ser que sabia de todos os seus segredos e que lhe lambera muitas lágrimas. Ela o amava. Às 4:13 descobriu que o amor pelo cão era maior do que o amor pelo marido. Abriu arregaladamente os olhos e, se descobrindo, virou abruptamente para o outro lado. Cobriu-se novamente esticando o lençol com a pinça do dedão e o dedo médio do pé. Um filme chato passava pela sua cabeça: sua vidinha medíocre. Queria saber o que seria se não fosse o que fora por todos estes anos. Pensou em tantas possibilidades que achou melhor logo esquecer para não piorar sua insatisfação com a vida. Pensava nas crianças. Eram filhos maravilhosos mas àquela altura da vida, já criados, tinham suas famílias e quase nenhum tempo para dedicar à mãe. Não sabia se achava melhor assim mas sabia que merecia descansar. Enfiou novamente a mão debaixo do travesseiro e quando deu por si eram 8:14. Adormeceu mas sentia o peso da insônia nas pernas e nas juntas dos dedos. Levantou-se e em jejum lavou a roupa que deixara de molho. O marido a esta altura já havia saído para trabalhar. Não lhe desejara “bom dia”. D. Rosa tomou um banho demorado. Lavou os cabelos delicadamente, passou sabonete duas vezes em cada axila, secou-se e passou talco e hidratante nos pés. Penteou os cabelos olhando-se no espelho. Via ali em algum lugar o rosto bonito da moça que fora. Sentiu inveja de si mesma. Tentou colocar um vestido vermelho que não lhe cabia há anos. Não passava do quadril. Colocou um vestido florido que odiava mas lhe era confortável. Olhou-se no espelho e a moça que fora havia sumido. Sentou-se à mesa de café, serviu uma xícara, colocou duas colheres pequenas de açúcar. Escolheu um pão adormecido bem clarinho, besuntou a faca de manteiga, passou no pulso direito, depois no esquerdo e cortou. Finalmente encontrou a paz.

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